Como já deve ter notado, a IA é atualmente um «tema quente»: é quase impossível evitar a cobertura mediática e o debate público sobre a IA. No entanto, também pode ter reparado que IA significa coisas diferentes para pessoas diferentes. Para algumas, a IA tem que ver com formas de vida artificiais, capazes de superar a inteligência humana, e, para outras, praticamente qualquer tecnologia de tratamento de dados pode ser designada IA.
Para preparar o terreno, por assim dizer, vamos debater em que consiste a IA, como pode ser definida e que outros domínios ou tecnologias estão estreitamente relacionados. Antes de fazê-lo, no entanto, vamos realçar três aplicações da IA que ilustram diferentes aspetos da mesma. Voltaremos a cada uma delas durante o curso, para aprofundarmos a nossa compreensão.
Os carros autónomos exigem uma combinação de muitos tipos de técnicas de IA: pesquisa e planeamento para encontrar a rota mais conveniente entre os pontos A e B, visão por computador para identificar obstáculos, e tomada de decisões em situações de incerteza, para lidar com o ambiente complexo e dinâmico. Cada uma destas técnicas deve funcionar com uma precisão quase perfeita para evitar acidentes.
As mesmas tecnologias também são utilizadas noutros sistemas autónomos, tais como robôs de entregas, drones voadores e navios autónomos.
Implicações: a segurança rodoviária deverá melhorar à medida que a fiabilidade dos sistemas ultrapassar o nível humano. A eficiência das cadeias de logística no transporte de mercadorias deverá melhorar. Os seres humanos assumirão um papel de supervisão, acompanhando o que se passa enquanto as máquinas tratam da condução. Uma vez que os transportes são um elemento essencial da nossa vida quotidiana, é provável que também haja algumas implicações nas quais ainda nem sequer pensámos.
Muitas das informações com que nos deparamos durante um dia habitual são personalizadas. Os exemplos incluem conteúdos do Facebook, Twitter, Instagram e outras redes sociais; publicidade na Internet; recomendações de músicas no Spotify; recomendações de filmes no Netflix, na HBO e noutros serviços de streaming. Muitos editores online, tais como os sites de jornais e empresas de radiodifusão, bem como motores de busca como o Google, também personalizam os conteúdos que oferecem.
Enquanto a primeira página da versão impressa do New York Times ou do China Daily é a mesma para todos os leitores, a primeira página da versão online é diferente para cada utilizador. Os algoritmos que determinam os conteúdos que vê são baseados em IA.
Implicações: embora muitas empresas não queiram revelar os detalhes dos seus algoritmos, estar ciente dos princípios fundamentais ajuda a perceber as potenciais implicações: estas envolvem as chamadas bolhas de filtragem, câmaras de ressonância, fábricas de trolls, notícias falsas e novas formas de propaganda.
O reconhecimento facial já é uma funcionalidade utilizada em muitas aplicações dirigidas a clientes, bem como de âmbito empresarial e governamental, por exemplo a organização de fotografias consoante as pessoas retratadas, a identificação automática nas redes sociais e o controlo de passaportes. Podem ser utilizadas técnicas semelhantes para reconhecer outros carros e obstáculos à volta de um carro autónomo, ou para estimar as populações de vida selvagem, para dar apenas alguns exemplos.
A IA também pode ser utilizada para gerar ou alterar conteúdos visuais. Entre os exemplos já em utilização, incluem-se a transferência de estilo, que permite adaptar fotos pessoais para fazer com que pareçam ter sido pintadas por Vincent van Gogh, e personagens criados por computador em filmes como Avatar, o Senhor dos Anéis e filmes de animação populares da Pixar, em que os personagens animados replicam gestos feitos por atores humanos reais.
Implicações: quando essas técnicas avançarem e se tornarem mais amplamente disponíveis, será fácil criar vídeos falsos de eventos com um aspeto natural, que serão impossíveis de distinguir de imagens reais. Isto põe em causa a noção de «ver para crer».
A popularidade da IA nos meios de comunicação social deve-se, em parte, ao facto de as pessoas terem começado a usar o termo quando se referem a coisas que costumavam ter outras designações. Pode ver praticamente tudo a ser chamado de IA, desde estatísticas e análises empresariais a regras «se, então» codificadas manualmente. Por que motivo isto acontece? Por que motivo a perceção pública da IA é tão nebulosa? Vamos analisar algumas razões.
Nem sequer os investigadores no domínio da IA têm uma definição exata do termo. Ao invés disso, o domínio está a ser constantemente redefinido, com o surgimento de novos temas e a classificação de outros como estando fora da esfera da IA.
Segundo uma velha piada (de origem geek), a IA é definida como «coisas fixes que os computadores não conseguem fazer». A ironia é que, de acordo com esta definição, a IA nunca pode fazer quaisquer progressos: assim que descobrimos a forma de fazer algo fixe com um computador, isso deixa de ser um problema de IA. No entanto, esta definição contém um elemento de verdade. Há 50 anos, por exemplo, considerava-se que os métodos automáticos de pesquisa e planeamento pertenciam ao domínio da IA. Hoje em dia, esses métodos são ensinados a todos os alunos de informática. Do mesmo modo, determinados métodos para tratar informações incertas estão a tornar-se tão bem compreendidos que é provável que, muito em breve, sejam transferidos do domínio da IA para o das estatísticas ou das probabilidades.
A confusão sobre o significado de IA é agravada pelas visões da mesma presentes em várias obras literárias e cinematográficas de ficção científica. As histórias de ficção científica apresentam frequentemente criados humanóides amigáveis, que verbalizam factoides excessivamente detalhados ou diálogos espirituosos, mas que, por vezes, seguem os passos de Pinóquio e começam a pensar se poderão tornar-se humanos. Outra classe de seres humanóides na ficção científica rende-se a motivações sinistras e vira-se contra os seus mestres, à laia das velhas histórias sobre aprendizes de feiticeiros, como o Golem de Praga ou outras ainda mais antigas.
Muitas vezes, a existência robótica dessas criaturas é apenas uma ténue camada que cobre um agente de caráter muito humano, o que é compreensível, uma vez que os leitores humanos têm de conseguir identificar-se com a maioria da ficção, até mesmo a ficção científica. Caso contrário, sentir-se-iam alienados por uma inteligência demasiado diferente e estranha. Assim, a maioria da ficção científica deve ser lida como uma metáfora para a atual condição humana e os robôs podem ser vistos como substitutos de setores reprimidos da sociedade, ou talvez da nossa busca do sentido da vida.
Um outro obstáculo para a compreensão da IA é a dificuldade de saber que tarefas são fáceis ou complicadas. Olhe à sua volta e pegue num objeto com a mão; depois, pense no que fez: usou os olhos para analisar o ambiente envolvente, determinou onde é que estavam alguns objetos adequados para pegar, escolheu um deles e planeou uma trajetória para a sua mão o alcançar, depois moveu a mão ao contrair vários músculos sequencialmente e conseguiu apertar o objeto, exercendo a quantidade certa de força para o manter entre os seus dedos.
Pode ser difícil ter noção de quão complicado é tudo isto, mas, por vezes, isso torna-se visível quando algo corre mal: o objeto em que pega é muito mais pesado ou leve do que esperava, ou outra pessoa abre uma porta no momento em que vai agarrar a maçaneta… e pode perder totalmente o equilíbrio. Normalmente, estes tipos de tarefas parecem não implicar esforço, mas essa sensação é o resultado enganador de milhões de anos de evolução e vários anos de prática na infância.
Embora seja fácil para si, agarrar objetos é extremamente difícil para um robô, sendo esta uma área de estudo ativo. Os exemplos recentes incluem o projeto de preensão robótica da Google e um robô para a colheita de couve-flor.
Por outro lado, tarefas como jogar xadrez e resolver exercícios matemáticos podem parecer muito difíceis, pois exigem anos de prática para as dominar e envolvem as nossas «faculdades superiores» e pensamento consciente concentrado. Não é de admirar que alguma investigação inicial sobre a IA se tenha concentrado nestes tipos de tarefas e pode ter parecido, nessa altura, que estas consubstanciam a essência da inteligência.
Desde então, veio a verificar-se que jogar xadrez é uma atividade muito adequada para os computadores, que podem seguir regras relativamente simples e calcular muitas sequências de movimentos alternativas, a uma taxa de milhões de cálculos por segundo. Os computadores derrotaram o então campeão mundial de xadrez em título, nas famosas partidas Deep Blue vs. Kasparov, em 1997. Quem teria pensado que o problema mais difícil acabaria por ser agarrar nas peças e movê-las no tabuleiro, sem as derrubar! Estudaremos as técnicas utilizadas para jogar jogos como o xadrez ou o jogo do galo no Capítulo 2.
Do mesmo modo, embora o domínio avançado da matemática exija (o que parece ser) a intuição e o engenho humano, muitos (embora não todos) dos exercícios de um curso normal do ensino secundário ou universitário podem ser resolvidos utilizando uma calculadora e um conjunto simples de regras.
Uma tentativa para estabelecer uma definição mais útil do que a piada sobre «aquilo que os computadores ainda não conseguem fazer» seria enumerar as propriedades que são características da IA, neste caso, a autonomia e a adaptabilidade.
Terminologia importante
A capacidade de executar tarefas em ambientes complexos, sem a orientação constante de um utilizador.
A capacidade de melhorar o desempenho, ao aprender com a experiência.
Ao definir e falar sobre a IA, temos de ser prudentes, uma vez que muitas das palavras que utilizamos podem induzir em erro. Entre os exemplos comuns, contam-se as palavras «aprendizagem», «compreensão» e «inteligência».
É muito possível que se diga, por exemplo, que um sistema é inteligente, porque dá instruções de navegação exatas ou deteta sinais de melanoma em fotografias de lesões cutâneas. Quando ouvimos algo do género, a palavra «inteligente» sugere facilmente que o sistema é capaz de executar qualquer tarefa que uma pessoa inteligente consegue realizar: ir ao supermercado e fazer o jantar, lavar e dobrar a roupa, etc.
Do mesmo modo, quando dizemos que um sistema de visão por computador compreende imagens porque consegue segmentá-las em objetos distintos, tais como carros, peões, edifícios, a estrada, etc., a palavra «compreende» sugere facilmente que o sistema também compreende que, mesmo que uma pessoa esteja a usar uma t-shirt com uma impressão de uma fotografia de uma estrada, não se pode conduzir nessa estrada (e sobre a pessoa).
Em ambos os casos anteriores, estaríamos errados.
Nota
Marvin Minsky, um cientista cognitivo e um dos maiores pioneiros no domínio da IA, inventou o termo «palavra mala» (suitcase word) para designar termos que carregam um conjunto de significados diferentes, que lhes estão associados mesmo quando pretendemos usar apenas um. Usar esses termos aumenta o risco de interpretações incorretas, como as indicadas anteriormente.
É importante perceber que a inteligência não é unidimensional, como a temperatura. Podemos comparar a temperatura de hoje com a de ontem, ou a temperatura de Helsínquia com a de Roma, e ver qual é a mais alta e a mais baixa. Temos até tendência para pensar que é possível classificar as pessoas quanto à sua inteligência — é esse o objetivo teórico do quociente de inteligência (QI). No entanto, no contexto da inteligência artificial, é óbvio que diferentes sistemas de IA não podem ser comparados num único eixo ou dimensão, em termos da sua inteligência. Um algoritmo para jogar xadrez é mais inteligente do que um filtro de spam, ou um sistema de recomendação de música é mais inteligente do que um carro autónomo? Estas perguntas não fazem sentido. Isto porque a inteligência artificial é estreita (voltaremos ao significado de IA estreita no final deste capítulo): ser capaz de resolver um problema não nos diz nada sobre a capacidade para resolver um problema diferente.
A classificação em IA vs. não IA não é uma dicotomia clara do tipo «sim/não»: embora alguns métodos sejam claramente IA e outros claramente não o sejam, existem também alguns métodos que envolvem uma pitada de IA, tal como certas receitas pedem uma pitada de sal. Assim, por vezes seria mais adequado falar no «caráter de IA» (em inglês, AIness) (como nas palavras inglesas happiness [felicidade] ou awesomeness [grandiosidade]), ao invés de discutir se algo é, ou não, IA.
Nota
Gostaríamos de desencorajar a utilização de IA como um substantivo contável nas discussões sobre o tema: uma IA, duas IA e assim por diante. A IA é uma disciplina científica, como a matemática ou a biologia. Isto significa que a IA é um conjunto de conceitos, problemas e métodos para resolvê-los.
Uma vez que a IA é uma disciplina, não devemos dizer «uma IA», tal como não dizemos «uma biologia». Este ponto deveria ser perfeitamente evidente quando tenta dizer algo como «precisamos de mais inteligências artificiais». Isso soa errado, não é verdade? (A nós, soa).
Apesar de a desencorajarmos, a utilização de IA como um substantivo contável é habitual. Por exemplo, note o título Data from wearables helped teach an AI to spot signs of diabetes (Dados de aparelhos vestíveis ajudaram a ensinar uma IA a detetar sinais de diabetes), que, fora essa utilização, é um título bastante bom, pois sublinha a importância dos dados e deixa claro que o sistema apenas consegue detetar sinais de diabetes, ao invés de fazer diagnósticos e tomar decisões de tratamento. E, decididamente, nunca deve dizer algo como Google’s artificial intelligence built an AI that outperforms any made by humans (Inteligência artificial da Google desenvolveu uma IA que suplanta qualquer uma construída por seres humanos), que é um dos títulos mais enganosos que já vimos sobre a IA (tenha em atenção que o título não é da autoria da Google Research).
Como é óbvio, a utilização de IA como um substantivo contável não constitui um grande problema se o resto do que for dito fizer sentido, mas se quiser falar como um especialista, evite dizer «uma IA» e, em vez disso, diga «um método de IA».